terça-feira, 1 de dezembro de 2009

|http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2009/11/28/ferreira-da-rosa-um-guia-pela-babylonia-desconhecida-245178.asp
O artigo do jornalista Guilherme Freitas no caderno PROSA E VERSO do Globo tinha o título "Aquelas Mulheres";mas é o mesmo que se lê no blog e, se vc não conseguir linkar, leia aqui:


Ferreira da Rosa, um guia pela 'Babylonia desconhecida'

As inscrições nas lápides — "Saudades eternas", "Lembranças do seu companheiro" — sugerem tratar-se de um cemitério como outro qualquer. Mas o Cemitério Israelita de Inhaúma tem uma história centenária que remonta a um capítulo pouco lembrado do passado da cidade. Com parte de seus túmulos depredados e desfigurados, ele se tornou, para historiadores e pesquisadores, um símbolo do tratamento dado à memória das 797 pessoas enterradas ali: em sua maioria mulheres, mas também homens e crianças, todos ligados à Associação Beneficente Funerária e Religiosa Israelita, criada em 1906 por mulheres que trabalhavam na baixa prostituição no Centro do Rio.

Imigrantes de origem judaica vindas da Europa Oriental (algumas enganadas por traficantes de mulheres, outras por desejo de escapar das condições da terra natal), elas fundaram a associação de ajuda mútua para contornar normas religiosas que determinam que prostitutas sejam enterradas em locais à parte, assim como suicidas. O terreno em Inhaúma foi comprado em 1912 e, quatro anos depois, inaugurou-se ali o primeiro cemitério judaico do Rio. O último enterro foi feito nos anos 1970. Com a morte das últimas integrantes da associação, o espaço ficou abandonado. O mato cresceu, cobrindo os túmulos. Os adornos de bronze das lápides foram roubados. Traficantes da favela do Rato Molhado, $do cemitério, começaram a usá-lo para desova de corpos.

Nos anos 1980, o campo-santo passou a ser administrado pelo Cemitério Comunal Israelita do Caju. Em 2007, foi tombado pela prefeitura, provocando um debate na comunidade judaica a respeito da validade de preservá-lo como sítio histórico (leia mais sobre esse debate no post abaixo). Esse debate, que passa pela complexa relação das mulheres que praticam a prostituição com a sociedade na qual estão inseridas, reflete muitas das questões que mobilizavam o Rio no final do século XIX, quando a capital em rápida expansão se viu obrigada a lidar com a realidade de uma metrópole. Imigração, prostituição e criminalidade passaram a fazer parte do dia a dia de uma cidade que deixava aos poucos de ser uma província.

Numa série de artigos no jornal "O Paiz", o jornalista Francisco Ferreira da Rosa investigou o universo das prostitutas judias, chamadas na época de "polacas", termo que ficou registrado nos dicionários como sinônimo de meretriz. Os artigos foram reunidos no livro "O Lupanar", publicado em 1896. Sucesso com os leitores da época, está há décadas fora de catálogo. Este ano, o neto do autor, Carlos Ferreira da Rosa, organizou uma reedição da obra, com o auxílio de Verena Kael e Matilde Teles, diretoras do documentário "...Aquelas mulheres...", que aborda o tema. Foi produzida uma tiragem caseira de 100 exemplares, doada a bibliotecas e centros de referência. Mantendo o português da época e recheado de ilustrações, o livro abre uma janela para um momento único na história do Rio.

O processo de reedição de "O Lupanar — estudo sobre o caftismo e a prostituição no Rio de Janeiro" durou um ano, durante o qual o livro passou por oito revisões para conservar a grafia empregada por Ferreira da Rosa na época ("Affrontando commodidades, conveniencias, odios e ingratidões, penetrámos n’uma cidade completamente nova, Babylonia desconhecida..."). Recém-saída do forno, a nova edição vem sendo doada aos poucos a instituições como as bibliotecas nacionais de Brasil, Portugal e Espanha e a Biblioteca do Congresso Americano, entre outras.

Uma das diretoras do documentário "...Aquelas mulheres...", Verena Kael espera que a difusão da obra de Ferreira da Rosa ajude a dissipar o tabu com o qual ela e a outra diretora, Matilde Teles, se depararam desde o momento em que decidiram fazer o filme, há três anos:

— As pessoas não queriam tocar no assunto. Perguntavam por que queríamos falar sobre isso. Ainda é um tabu — diz Verena, que trabalha com a colega nos últimos detalhes do filme, com 20 minutos de duração, previsto para ficar pronto em dezembro.

Mistura de curiosidade, preconceito e espanto

Esse tabu também foi enfrentado pela historiadora Beatriz Kushnir quando iniciou, nos anos 1980, sua pesquisa pioneira sobre o tema, que gerou o livro "Baile de Máscaras: mulheres judias e prostituição. As polacas e suas associações de ajuda mútua" (Editora Imago, 1996). Naquela década, conta Beatriz, uma renovação nos estudos de História fez com que pesquisadores dessem mais atenção aos personagens geralmente excluídos dos relatos oficiais, como as prostitutas. Ela lembra que "O Lupanar" foi essencial para sua pesquisa, porque nele Ferreira da Rosa registra a rotina daquela comunidade num texto que reflete a visão geral da sociedade da época, marcada por um misto de curiosidade, preconceito e espanto.

— Ferreira da Rosa é um homem do seu tempo, retratando aquela realidade pelo olhar do seu mundo. Ele escreveu sobre uma narrativa pungente na cidade, captando no ar uma questão que era discutida por policiais, juristas e médicos — diz Beatriz.

Desde o início da série de reportagens, o jornalista se apresenta como um guia do leitor pela "Babylonia desconhecida" da baixa prostituição carioca, que ocupava casebres mal conservados nas ruelas do Centro. A jornada ao submundo da cidade, porém, nada tinha de sedutora — as palavras mais usadas por Ferreira da Rosa para definir seu propósito são "moralização" e "saneamento" (propósito resumido na epígrafe sob a qual foram publicados os artigos: "PODRIDÃO DO VÍCIO", em letras garrafais).

O discurso do jornalista canaliza, como nota Beatriz, aquele construído pelas autoridades cariocas, que viam na baixa prostituição uma infecção que ameaçava o corpo são da cidade. Esse olhar moralizador se dirigia especialmente, no caso de Ferreira da Rosa, aos "cáftens" (termo corrente na época para designar os cafetões), que promoviam o tráfico de mulheres da Europa Oriental para a América (numa rota que passou a favorecer o Brasil depois que Estados Unidos e Argentina adotaram leis mais rígidas de imigração).

É para os cafetões que o jornalista guarda as palavras mais virulentas ("turba de exploradores", "repellente oficio"). Em certos momentos, refere-se a eles com uma linguagem contaminada de antissemitismo, problema que a historiadora Esther Largman atribui a uma generalização indevida cometida pelo autor.

— Da comunidade judaica do Rio, Ferreira da Rosa só conheceu aquele grupo ligado à prostituição. Ele não é como Paulo Barreto (nome real do escritor João do Rio), que, quando escreveu "As religiões no Rio" (publicado em 1904), criticou aquele grupo, mas também falou de outros setores da comunidade judaica que fugiram da Europa devastada para lutar por uma vida melhor — pondera Esther, autora do romance histórico "Jovens polacas" (Editora Rosa dos Tempos, 1993; reeditado em 2008 pela BestBolso).

Apesar disso, Esther considera "O Lupanar" um registro histórico fundamental e aponta passagens em que o autor desmonta os preconceitos (dele e do leitor da época), revelando simpatia pelas mulheres que retrata. Como exemplo, cita o capítulo dedicado ao grupo de prostitutas que faz uma vaquinha para pagar as passagens dos filhos de um vidraceiro judeu, morto de febre amarela, para a casa de uma tia deles na Inglaterra.

Descrições minuciosas e histórias comoventes

Foi inspirada em outra dessas passagens de "O Lupanar" — a que conta a história de Sophia Chamys, uma polonesa de 21 anos que desembarca no Rio depois de ser enganada por cafetões na Europa e na América — que a jornalista canadense Isabel Vincent escreveu parte de "Bertha, Sophia e Rachel" (Relume Dumará, 2006), uma reportagem sobre a vida de três jovens prostitutas judias na América do Sul e nos Estados Unidos no início do século XX.

Isabel elogia as descrições minuciosas dos bordeis e da estrutura financeira e logística das redes de baixa prostituição, que permitem ao leitor, ainda hoje, ter uma ideia de como era aquele mundo. Para a jornalista, são essas passagens que mantêm a obra de Ferreira da Rosa relevante:

— Ele tentou entender como aquele universo funcionava e fez uma crônica muito interessante do submundo da época. Conta histórias terríveis, entra em detalhes sobre como as mulheres foram enterradas e sobre o sofrimento das famílias delas. É de partir o coração.